domingo, 10 de outubro de 2010

Sonho, pt. 2 - Micael

Os montes infestam-se. Aos milhares, a perder de vista, uma praga. Demónios de pele suja, têm unhas que prolongam os dedos vermelhos. Os seus corpos são imensos e toscos, as suas testas encimadas por pequenos cornos. Rastejam, cuspindo um veneno preto que lhes desce pelo queixo, sugando a vida da terra e fazendo o verde em sangue. Abocanham torrões húmidos cuspindo-lhes apenas o pó. Grunhem ruídos de prazer, devagar e baixinho. Avançam sem parar, a sua gula calma deixa um rasto inexorável de morte.

Ondulante, um pé paira no ar, cada vez mais perto da terra. A sola fina de uma bota verde toca o chão, e depois a outra. Ao peito, trás uma armadura azul, na cintura uma espada embainhada. Na face voam-lhe dois olhos claros e, nas costas, batem-lhe duas asas brancas.

Pousa no chão lentamente. Quando o cabelo ondulado assenta, solta um sorriso sereno. Um demónio, à sua frente, responde com um grunhido feroz e despeitoso, que excita os outros milhares e milhares de demónios. O anjo estende-lhes o sorriso, calmo e solitário. Empunha a sua espada e olha para o céu.

Nesse momento, o anjo canta o seu nome em três movimentos e atea-se um fogo verde e azul na sua espada. Um outro ponto de luz se acende, ao longe. Depois outro. Depois mais ainda. Milhares de luzes, juntam-se à sua. Todas são diferentes da sua, todas são diferentes das outras. Milhares de pontos de luz estrelam espaço entre o verde da terra que resta e o azul do céu que sobra. O anjo olha em volta levanta as três sílabas do seu nome num brado. Milhares de vozes, todas diferentes, lhe devolvem o repto. Sorridente, o anjo olha para baixo e, antes de trespassar o demónio com a sua espada ardente, sussura-lhe em três suspiros, as três sílabas do seu nome.
Mi-ca-el.