sábado, 30 de outubro de 2010

Candura, pt. 1

Encostou as costas à porta da rua, virado para o apartamento. Olhou-o pela última vez e deteve-se um minuto longo. A meia luz tinha-se deixado invadir pelo escuro da noite e o apartamento, quase sem mobília e sem pinturas ou retratos na parede estava mais cinzento e frio que de costume. Pelo menos foi isso que sentiu. Arrependia-se, agora de ter esvaído aquele casulo e de o ter tornado num reduto sem memória, porque a ausência de calor acabou por reprimir-lhe a vontade de ficar mais tempo.

Deteve-se aquele minuto longo, agora que o ia abandonar, enchendo os pulmões daquele ar confinado que julgou que lhe ia ser útil. Enfiou o gorro, que enterrou orelhas abaixo e abriu a porta.

À sua frente encontrou a sua vizinha que estava a chegar a casa. Era uma senhora de idade, já bem dentro dos setenta anos e que vivia ali sozinha. Era raro ouvir barulho no corredor por causa de visitas e as vozes que se ouviam através das paredes finas eram as da rádio.

Procurou afastar o olhar e não lhe disse nada. Mas, passados segundos, foi ela que encontrou os olhos dele e lhe falou.
- "Olá, boa noite", disse-lhe. "Tenho medo que a minha filha preferisse que eu já tivesse morrido".

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Casa

Demorei algum tempo a chegar a casa.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Em frente

Se forem ao Cais da Rocha, vão encontrar um barco velho chamado Príncipe Perfeito. O barco balança lentamente, ancorado ao cais, marrando contra as paredes numa senilidade cega, de velho.

Se olharem para a frente, encontram outro barco, bem mais jovem. Olhem com atenção e vejam como tem o pavilhão sul africano e, por baixo do nome inenarrável, está o de uma cidade: Cape Town.

De repente, olhem de novo para o barco velho, de amuras beijando as paredes do cais e quase que se ouvirão a voz do príncipe velho dizer:
- Soltem-me. Soltem-me só mais uma vez. Soltem as amarras, só um bocado, e vocês ainda vão ver.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Por fim

São todos iguais, pelo que me deu para ver. Da primeira vez dizem-nos que não pensemos mais nisso, enquanto se começam logo a afastar, a virar costas e a encaminhar-se para a porta. Se os apanharmos mais a jeito, de uma segunda vez, dizem que é a profissão deles e logo se nos escapam entre os dedos. Para os mais resolutos, têm outras fórmulas, que passam por palavras como "obrigação" e até "ética", até chegarem a citar um juramento de um grego qualquer com um nome parecido com "hipócrita". Os médicos salvam-nos a vida, facto, e é a coisa menos hipócrita que alguma vezes nos fizeram, mas ainda assim não lhes podemos agradecer que eles não deixam.

-

Foram dezenas os actos de amor que cometeram sobre mim. Dezenas de frases foram ditas, que não teriam sido ditas em circunstâncias normais, por dezenas de pessoas que decidiram não esperar mais para dizê-las. Foram dezenas de formas de expor a inegabilidade do bem que dezenas de pessoas me querem. Até esse estado de franqueza e pureza, que escapa às medidas que, normalmente, se tiram às palavras, se tornar ele próprio normal. Não é.

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Durante mais de sete horas, uma pessoas com quem troquei cinco palavras, juntou outras duas, debruçaram-se sobre o meu corpo e lograram remendar um buraco, em ponto de cruz, no mais recôndito dos seus cantos. Não pararam, não desistiram, não me largaram enquanto não me deixaram na porta escancarada do labirinto, de chave na mão, para que a pudesse trancar atrás de mim. Aqueles três nomes, Fátima Coelho, Carlos Costa e Nádia Gonçalves são, para mim, o sinónimo mais límpido de algo que já não tem por onde correr mal. Da tranquilidade.

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Seria idiota comparar o grau. Não sei medir o que custa ou o que vale mais, se as sete horas no bloco operatório se as mesmas sete que os meus pais, as minhas irmãs e o meu sobrinho esperam, sem arredar pé, sem que o pé arredado fosse sequer uma hipótese. Não se comparam valores de grau infinito porque são iguais na sua totalidade. Não se comparam absolutos.

-

Quando era pequeno, tinha que atravessar um campo de cereais para chegar até à escola primária. Não o fazia sozinho. A minha mãe acordava sempre antes de toda a gente e preparava tudo para o dia que vinha aí. Depois, quando os outros se iam embora, pegava em mim, o mais pequeno e, não raras vezes, íamos a pé por esse campo até à escola. No final do ano, antes das férias, as espigas estavam no seu ponto mais alto e, nesse ponto mais alto, eram mais altas que eu. O carreiro, nessa altura, transformava-se num labirinto de que não se via o fundo e sabia que se me perdesse ali não saberia encontrar o caminho de volta. Mas não estava sozinho. A minha mãe seguia à minha frente, sempre em silêncio, de mão dada com a minha, a mostrar-me o caminho até à porta do labirinto, do outro lado, que ela já conseguia ver e eu não.

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Não sei comparar absolutos. São incomparavelmente sempre o mesmo. Não vale mais um que o outro. Mas, no labirinto sem fundo, três pessoas juntaram as mãos e uma delas, chamada Fátima Coelho, deu-ma a mim, enquanto dezenas de outras pessoas não a largavam. Sei que esse não foi um acto médico brilhante, ou melhor, não foi só um acto médico brilhante. Foi a própria definição de um acto de amor.

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No momento de maior fraqueza, quando me escapava a lágrima do medo, lá estava a mão do meu pai, a segurar a minha. No momento de fraqueza ainda maior, quando a minha mão não tinha força para procurar as mãos das minhas irmãs, elas correram a encontrá-la. E no fundo do labirinto dei a mão à minha mãe e, quando me escapava a lágrima da felicidade, fechei a porta atrás de mim.

-

E suspirei "chegámos".

domingo, 10 de outubro de 2010

Sonho, pt. 2 - Micael

Os montes infestam-se. Aos milhares, a perder de vista, uma praga. Demónios de pele suja, têm unhas que prolongam os dedos vermelhos. Os seus corpos são imensos e toscos, as suas testas encimadas por pequenos cornos. Rastejam, cuspindo um veneno preto que lhes desce pelo queixo, sugando a vida da terra e fazendo o verde em sangue. Abocanham torrões húmidos cuspindo-lhes apenas o pó. Grunhem ruídos de prazer, devagar e baixinho. Avançam sem parar, a sua gula calma deixa um rasto inexorável de morte.

Ondulante, um pé paira no ar, cada vez mais perto da terra. A sola fina de uma bota verde toca o chão, e depois a outra. Ao peito, trás uma armadura azul, na cintura uma espada embainhada. Na face voam-lhe dois olhos claros e, nas costas, batem-lhe duas asas brancas.

Pousa no chão lentamente. Quando o cabelo ondulado assenta, solta um sorriso sereno. Um demónio, à sua frente, responde com um grunhido feroz e despeitoso, que excita os outros milhares e milhares de demónios. O anjo estende-lhes o sorriso, calmo e solitário. Empunha a sua espada e olha para o céu.

Nesse momento, o anjo canta o seu nome em três movimentos e atea-se um fogo verde e azul na sua espada. Um outro ponto de luz se acende, ao longe. Depois outro. Depois mais ainda. Milhares de luzes, juntam-se à sua. Todas são diferentes da sua, todas são diferentes das outras. Milhares de pontos de luz estrelam espaço entre o verde da terra que resta e o azul do céu que sobra. O anjo olha em volta levanta as três sílabas do seu nome num brado. Milhares de vozes, todas diferentes, lhe devolvem o repto. Sorridente, o anjo olha para baixo e, antes de trespassar o demónio com a sua espada ardente, sussura-lhe em três suspiros, as três sílabas do seu nome.
Mi-ca-el.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sonho, pt. 1 - Coisas bonitas

Desligaram tudo. Disseram-me que, agora, há só uma coisa, mais importante que falar e que cantar, mais importante que correr e que dançar, que comer e que mijar, que olhar e que ouvir, só há uma coisa. Chegaram ao ponto de dizer que não precisava de pensar em respirar, que não precisava de pensar em pensar. Mandaram-me ficar ali, deitado, reduzido ao sopro de uma máquina e ao fundo de uma equação e nada mais do que isso.

Sim, algo mais que isso. Sim, um pouco mais que isso, sobrou-me uma batida. Mandaram parar tudo, minguar tudo, esquecer tudo. Mas o coração continuou, sozinho, no escuro.

Nesses dias, como três dezes anos antes, e um pouquinho mais, fui o corpo em que apenas uma coisa importava: voltar a preencher de porvir cada um dos meus pedaços. Como nos dias antes de nascer, trinta e pouco anos antes, voltei a ser apenas uma batida no escuro. No escuro. No pouco mais que escuro.

Sim, algo mais que isso. Muito pouco mais que isso, muito pouco mais que escuro, muito pouco mais que nada, pouco mais que o sopro de uma máquina, no fundo de uma equação, eu fui só aquilo, sim, uma batida. Uma batida no pouco mais que escuro. Uma batida, uma batida, uma batida,
e o sonho de um ponto de luz.

Coisas bonitas

- O som.
- O som da antena a bater no tecto.
- É o tecto de ripas e as antenas dos carros, quando batem, parece como quando uma criança brinca com um pau a arrastar pela calçada. Faz "tr-r-r-r".
- Voltei a casa...
- O meu pai! A minha mãe.
- Está tudo bem, a sério que está tudo bem.
- As pessoas todas a olhar. Está tudo bem, não é caso para estar aqui deitado, não é caso para isto tudo, garanto-vos.
- Alguém falou comigo. Ela tem os olhos claros.
- Tenho que lhe dizer tudo. Não lhe posso mentir, nem ter vergonha de nada. Vou-me confessar com ela.
- Os olhos claros.
- O meu pai, outra vez! Sim, está tudo bem! Vai tudo correr bem. Vai tudo correr bem, não vai?
- Adeus.
- A porta. A sala. A sala tem um espelho.
- Do outro lado, há pessoas diferentes. Querem-me puxar. Não querem que me mexa, não querem que faça nada.
- Caramba, eu sou capaz de me mexer sozinho!
- Mais olhos claros.
- Toda a gente aqui tem olhos claros? Não consigo ter medo no meio de tantos olhos claros.
- Esta é a que vai cantar ao meu sangue uma cantiga de embalar.
- Vá. Isso. Dorme.
- Não. Não, não quero dormir. Só mais um bocadinho. Deixem-me pensar só mais numa coisa. Só mais uma, prometo.
- E esta, só mais esta. Esta é a última, prometo. Só mais esta pergunta. A sério, depois desta eu deixo-me ir.
- Só mais uma coisa... Só mais esta coisa... Só queria saber se sempre é verdade...

Respondeu-me de olhos claros. "Sim, sim, é verdade. Vá, faça isso."

- Isso. Isso. Pensa em coisas bonitas...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Eco

Minutos antes, curvado para a frente. Um enfermeiro fala-me de um espasmo muscular. Dá-me um calmante.

Minutos depois, sentado no sala de espera coberta de frio. A cabeça pesada pende do pescoço, segura pelas mãos enterradas no cabelo. Sinto a dor irradiar-se pelas costas. Sinto apertar-se o nó na garganta.

Nesse mesmo instante, erguendo os olhos. Vejo a Elsa e o Tozé irromperem pela sala e pelo frio, de passo firme e veloz. Levanto a cabeça para encontrá-los. Endireito o tronco e as costas e o pescoço.

Tento disfarçar o medo, turgindo os meus lábios com um sorriso. Tento disfarçar o sorriso que deveras lhe segue
e desata agora o nó na garganta
e logo se desfaz nos meus lábios, que voltam a secar.
"Vai tudo correr bem", tento dizer-lhes, sem me conseguir ouvir.

Agora, de olhos erguidos. Só oiço o eco dos seus lábios.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A morte de Jan Gerrit van Wassenaer

Já passava das 23h30 da noite de 29 de Outubro de 1723, quando o filho do Barão Jan Gerrit van Wassenaer irrompeu pela casa do famoso médico e cientista Herman Boerhaave. Trazia notícias do seu pais, nada menos do que o Almirante-mor da Armada Holandesa e Prefeito da província da Renânia, pelo menos da porção que cabia, na altura, às Províncias Unidas. E a revelação era chocante: o orgulhoso almirante estava agora no seu leito de morte.

Três dias antes, o oficial da marinha neerlandesa, dado que era aos prazeres da gula e ao consumo excessivo do álcool, brindara a companhia de alguns dos seus bons amigos com um dos seus banquetes. O efeito não foi surpreendente. Aliás, já não era a primeira vez que se sentira "pesado" após uma das suas abastadas refeições e tinha-se limitado a aplicar a receita habitual: vomitar o excesso cá para fora. Nas horas que se seguiram à refeição, tomou uma porção de um emético suave, um medicamento usado na altura para provocar o vómito, a que se seguiram outras formas mais tradicionais ainda de se livrar do problema, como a ingestão de 28 gramas de azeite e 180 gramas de cerveja (já nessa altura o seu efeito "emético" era bem conhecido). Perante o insucesso do gesto, o resoluto oficial tomou a decisão de forçar a nota e tomar mais quatro taças do medicamento, uma decisão que se revelaria fatal.

Ao primeiro vómito, sentiu uma forte dor no peito, sentindo-se como se alguma coisa se tivesse partido ou rompido no interior. Não tossiu nem perdeu a clarividência com que, aliás, terá declarado imediatamente que vinha chegando a morte e se pôs a rezar. Três dias depois, o famoso médico foi encontrá-lo deitado, inclinado para a frente. Havia passado esses últimos dias contorcendo-se e queixando-se de uma forte dor no peito e nas costas.

Tal como o pragmático homem do mar, o médico da casa também se cingiu às suas técnicas mais rotineiras, fazendo sangrar o paciência e dando-lhe compressas quentes, o que não terá resolvido o problema. Foi nessa altura que a família do Barão-Almirante decidiu contactar com o emérito (que não emético) rector magnificus e vice-Chanceler da Universidade de Leiden. O prof. Boerhaave chegou tarde de mais, encontrando o paciente já morto. É incerto se as técnicas aplicadas pelo médico da casa concorram para acelerar o desfecho. O certo é que esse desfecho era, tal como o pio almirante havia prontamente declarado, inevitável.

Tirando o chapéu de médico e colocando o de estudioso, pôde o professor proceder à autópsia, técnica científica cujos métodos ele próprio ajudara a desenvolver. Descobriu, com grande interesse, que o corpo do almirante ainda continha vestígios não digeridos do pato de três dias antes, assim como a presença de gases no abdómen e de líquidos espalhados pelo tórax que tiveram o efeito de colapsar um dos pulmões. No esófago, encontrou uma ruptura, pela qual conseguiu fazer passar um dedo, experiência invulgar que permitiu que todos quantos assistiam à operação repetissem.

Tinha sido, pela primeira vez na história, diagnosticado um síndrome raro que viria a ficar conhecido com o nome do insigne professor holandês, o Síndrome de Boerhaave, consistindo na ruptura espontânea de uma parte da parede do esófago, normalmente associada ao acto de vomitar forte e repetidamente. Durante o séc. XIX apenas mais cerca de 50 casos foram diagnosticados, com todos os pacientes a sofrer o mesmo destino do Almirante van Wassenaer. Foi só na década de '40 do séc. XX que um paciente foi, pela primeira vez, resgatado a esse destino através de uma operação cirúrgica que reparou a lesão.

Ainda hoje o acontecimento é considerado raro, sendo cinco vezes mais prevalente nos homens que nas mulheres e dando-se tipicamente em doentes entre os 50 e os 70 anos. A taxa de sobrevivência depende grandemente do diagnóstico atempado, dado que uma ruptura no esófago origina, invariavelmente, uma infecção bacteriana, que tende a avançar rapidamente. Mesmo hoje em dia, um terço dos doentes ainda só recebem um diagnóstico após a morte, sendo que em 90% dos casos não tratados, a infecção leva à morte entre as primeiras 24 e 48 horas. Sem a cirurgia adequada, a taxa de sobrevivência após 72 horas é praticamente zero.

Mas os avanços no tratamento desta condição têm sido notórios. Nos nossos dias, a taxa de sobrevivência nos pacientes operados com sucesso, dentro das primeiras 24 horas, cifra-se já nuns encorajadores 75%.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A engenheira que arranja pessoas

Esta história não é sobre mim. Ou melhor, não é só sobre mim. Quando tinha dois anos, a Enfermeira Catarina já sabia o que queria fazer quando fosse grande. Quando lhe perguntavam, tinha a resposta na ponta da língua: "Quero ser uma engenheira que arranja pessoas". Esta história também não é só sobre ela. Mas é muito mais sobre ela do que é sobre mim.

Na noite de 12 de Agosto de 2010, depois de comer de gosto uma sopa de letras preparada por um muito jovem casal que havíamos conhecido nas ruas de Odeceixe, lançámo-nos, eu e uns amigos, onde se incluíam o António José Miguel e a Elsa Vila Lobos, no prato principal. Depois de algumas garfadas, já um pouco custosas, deu-se um acidente: um pedaço de carne ficou impactado, sem conseguir passar pelas paredes do esófago, até ao estômago. Dava-se, assim, início à "Operação Entremeada".

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Morrer

Um anjo bailava, arrancando bocados do peito. "Diz morrer", pediu-lhe uma voz, "diz só morrer".
O anjo ondulava, estendendo agora os braços pelo ar, como asas.
Morrer, morrer,
morrer morrer
morrermorrer, repetiu, até a voz se desfazer
e dar à luz.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Lágrima

As ondas do mar elevavam-se acima da linha do horizonte, na sua tentativa de calar o murmúrio que vinha do mar. Eu ouvia-as, mergulhado no oceano, sem pé, só com a cabeça de fora. Ouvia-as e olhava para o fundo do mar que persistia para além delas, antes delas, levando o meu nome para longe.

Na face dos olhos húmidos, rolei pele abaixo, abrindo um sulco de sal e sangue e terra vermelha. Uma lágrima. E desfiz-me do sulco da cara voando milímetros de ar até cair nas ondas do oceano.

Percorri mil mundos em mil dias, deixei-me perder por todos os caminhos, vendado todos os olhos, até me esquecer de mim. Num uivo de raiva, ergui-me do mar e soprei na vela que quebrou o mastro e puxei pela onda que fez tombar o barco. Um homem caiu, sozinho, ao mar.

Depois, voei para a costa cinzenta e entrei na capela vazia. Ou quase. Diante da única vela acesa, uma mulher vestia de negro e rezava num soluço. Soberba, esquecida de mim, rodopiei num silvo que apagou a vela. A mulher chorou, sozinha, uma única lágrima. Como eu.

Lembrei-me de mim e, uma lágrima, chorei.

Saí pela fresta azul da porta e fui. Não tinha o traço dos mil dias desde que tinha saído da minha casa, deslizando pelo rosto, naquela sulco de sangue e sal e terra vermelha. Então vaguei por mundos escuros e frios, até chegar à cidade. Encontrei um palácio de gelo. Entrei por uma janela aberta, fazendo voar uma cortina de veludo vermelha.

Numa tela, um homem regressa a casa. A túnica dourada pesa-lhe tanto nos ombros que se vê ajoelhar. Não chega a ver o sorriso calmo do pai, que lhe afaga a cabeça. O sorriso não se pronuncia porque, agora, voltou a ter todo o tempo do mundo para sorrir. Não chega a ver o sorriso mas é invadido por ele, até se formar a promessa de uma lágrima nova.

Foi nesse momento que voltei a mergulhar. Enterrei-me na fibra da tela e despontei no canto do olho. Rolei pela face suada e sofrida, desfazendo-me, finalmente, num sulco de terra, na lágrima prometida.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Beijo

Tinha acabado de acender o lume para o jantar, quando um anjo lhe entrou pela janela. Encontrou-a de cócoras, erguendo-se lentamente, como se aqueles olhos azuis, aquelas asas branquíssimas, aquela visita celestial não fosse a coisa mais inesperada do mundo. Os olhos dela preparam-se para ouvir o que lhe vinha ser anunciado. “Avé Ma…”, e deteve-se sem conseguir concluir a frase. Era nesses olhos que viviam, lado a lado, o temor e a esperança daquela visita. Eram claros como a luz última do sol que beija a superfície verde da água, mas carregavam em si já o cinzento que anuncia a noite primeira.

“E você, como é que se chama?”, perguntou a mulher ao anjo. “Ghe…Ga...”, mais uma vez não conseguiu avançar um som que fosse à vista dos seus olhos. Recompôs-se decidido que estava, agora, a evitá-los e a olhar directamente para um ponto negro no chão. Voltou ao discurso que tinha sido preparado.

- Avé Maria, cheia de graça, trago-te uma boa notícia. Depois de fazer o homem, de lhe soprar para o nariz, de lhe falar pelos lábios, é Deus quem se faz homem, em Pessoa. Tu carregarás no teu ventre o Seu Filho.

A mulher cobriu a barriga com as mãos e baixou os olhos. Os seus olhares encontraram-se no mesmo ponto negro do pavimento. Quem desfez esse encontro foi o anjo que se aproximou lhe alcançou o queixo caído. Ergueu-o lentamente na sua direcção, deixando exposto o pescoço fino. Ela era tão completamente bela, a sua pele tão delicadamente suave, o ser perfume tão frágil e tão imensamente forte. Olharam-se lábios nos lábios, por um instante longo, enquanto o verde e o azul se perderam um no outro e deram a cor ao mar.

Beijaram-se.

Uma voz rouca como uma rocha levantou-se do céu e deixou a questão: “É com um beijo que me trais, Gabriel?”. Ele sabia bem que não.

domingo, 18 de julho de 2010

Farinha

A aldeia inteira seguia cabisbaixa numa procissão silenciosa até ao monte do Moinho. Nem sequer a condenada, que encabeçava o grupo, já resignada com a sua sorte, fazia o mínimo esgar de contestação ou revolta.
Apenas uma mulher falava mais alto e tentava impedir a marcha lenta do resto do grupo. "Mas ela não fez por mal! Não era isso que ela queria dizer! Será que não percebem!?", gritava na direcção no colectivo de juízes que, nas suas batinas, seguiam logo por trás da condenada. As outras mulheres da aldeia tentavam acalmá-la. "Vá lá, Fernanda, agora já não vale a pena. O que está dito, está dito. Não vale de nada estares agora a chover no molh... quer dizer, a sofrer por causa disto".
Chegaram finalmente ao Moinho. Era uma estrutura enorme e redonda, em que as paredes, em vez do branco cálido dos outros moinhos, era de um cinzento metálico e pesado. As pás, também elas de metal afiado, desciam numa cadência ritmada pelo uivo que faziam à medida que iam cortando a névoa às fatias.
Entraram todos para dentro do moinho, mantendo uma distância respeitável das pás. Alguém chegou a comentar que aquele aparato todo era desnecessário e que alguém ainda se podia aleijar com aquilo, comentário que mereceu um olhar de soslaio do colectivo de juízes e alguns reparos mais veementes por parte da população. "É preciso ter-se cuidado com o que se diz", disse um dos mais velhos. "A Polícia da Metáfora anda por todo o lado e eles são muito bons é a ler nas entre... eles são muito bons no que fazem, ou será que não sabe?" Sim, era claro que sabia, ou então porque é que estavam ali todos? O que se tinha limitado a fazer era apontar uma falha na segurança e tinha-o feito de forma muito clara.
O tom das reclamações de Fernanda tinha-se agora transformado em súplica. Só a condenada a pôde consolar: "Fernanda, não fiques assim. Foi um descuido da minha parte. Eu, que sou uma desbocada, tinha logo que me ir armar em esperta, já viste? Logo por causa daquele gajo".
Largou-lhe o braço e enfrentou a porta à sua frente, que dava acesso a uma câmara fechada. Depois de passar, o presidente do colectivo fechou a porta por trás de si e carregou num botão vermelho que havia ao lado. A Mó, que até aí estava parada ligou-se ao veio que estava a rodar e começou ela também no seu inexorável movimento numa lenta espiral descendente, ruminando tudo no seu caminho, câmara abaixo, precisamente no sentido dos ponteiros do relógio.

-

Junto à fonte, conversava exaltadamente com Fernanda acerca do que lhe tinha acontecido no dia anterior.
- É inacredit... Quer dizer, ainda me custa acreditar, Fernanda. Com que então ele anda-me com outra e ainda me diz que só me veio contar porque tinha medo que a Polícia da Metáfora. Acreditas nisto? Não me contou porque achava que eu devia de saber. Sabes o que é que ele me disse? "Imagina que, um dia, eu te digo que vou comprar tabaco e que vou ter com ela. E se eles descobrem? E se eles me perguntam o que é que eu queria dizer com «comprar tabaco»?".
- Ao menos, disse-te para imaginares a situação. Pelo menos lembrou-se disso.
- Eu quero lá saber, Fernanda! Olha, sabes que mais, comigo é que ninguém faz farinha!

Fernanda deixou cair o garrafão de água e pôs a mão à boca. Ainda olhou à volta para ver se alguém as tinha ouvido. Mas, na aldeia, toda a gente se calou e olhou na direcção da fonte.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Alterações

Olhou-a por cima dos óculos de ler.
- Então vamos lá ver. Ok, és a filha mais velha da minha irmã. Certo. Data de nascimento: 15 de Março de...
- 2001.
- 2001? A sério que nasceste em 2001?
- Sim.
- Ok, muito bem, o que quer dizer que nesta altura tens oito, aliás, nove, nesta altura tens nove anos. E andas na terceira classe, certo?
- Passei agora para o quarto ano.
Num formulário da empresa, que no canto superior direito trazia o acrónimo do seu nome e que tinha o título de "Briefing de Alterações" anotou calmamente o ano escolar, fazendo menção de escrever "Ano", em vez de "classe", para não se voltar a esquecer. Afinal de contas, a melhor maneira de começar era ir-se habituando ao jargão.
- E tens tido boas notas?
- Tive bons a tudo, menos a Estudo do Meio, em que só tive "Suficiente".
- Ok, muito bem. E então porque é que só tiveste "Suficiente"?, perguntou, enquanto voltava a soerguer o olhar por cima dos óculos, só para praticar.
- Porque não gosto muito, respondeu, encolhendo os ombros.
- Muito bem. Havemos então de ver se damos a volta a isso, não é? E que mais?

-

A cama de casal, branca, de lençóis brancos e edredon branco, era um reflexo do resto do quarto. A única excepção, agora, era o berço em madeira de contraplacado castanho, com um ursinho no alto da cabeceira, que estava encostado do lado esquerdo da cama. Não ouviu a porta ranger, apenas uma voz soluçante.
- Tenho saudades da minha mãe.
Falava o mais rapidamente que podia, talvez pela pressa de incluir uma frase completa entre os solavancos na garganta, talvez pela vergonha de não os conseguir impedir.
- Vem cá.
Trepou pelo final da cama, colocando-se entre o tio e o berço.
- Vá, não faças barulho que ainda o vais acordar.
Tentou acalmar os soluços interpondo-lhes um suspiro longo.
- Porque é que ela tinha que morrer?, disse, antes que uma nova enxurrada lhe voltasse a inundar a voz e a tapar os olhos.
- Ela não morreu. A minha irmã, agora, vive aqui dentro.
E apontou para o seu próprio peito. Ela firmou a face, de olhos pregados nos olhos dele.
- E, mais do que em qualquer outro sítio à face da terra, ela agora vive aqui, acrescentou, apontando para o peito dela.

Fez um sorriso ténue, enquanto fungava. Virou-se e enconchou o seu corpo no dele, antes de adormecer.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Pessoas cumprimentam-se com beijos de plástico

Pessoas cumprimentam-se com beijos de plástico. Homens abraçam crianças de plástico na estrada de plástico que dá para a escola. Jovens, com cabelos e corações de plástico, beijam jovens de plástico que, de cabeças deitadas nos seus colos, olham horizontes de plástico. Homens, jovens, distantes, morrem na televisão mortes de plástico.

A luz do mar da tarde inunda-me olhos. Fecho-os. Sobra a cor-de-laranja-rosa. Sobra um beijo tépido, em cada um deles.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Tempo

A tempestade criava um tumulto à superfície das águas.

No fundo, um globo jazia, pesado como uma bola de sabão. Estava cheio de tempo. Dentro do globo, à distância, o tropel ruidoso de um cavalo agitava a terra, uma espada brandia a luz bronzeada do sol. À distância, ouvia-se o chilrear de um pássaro que afagava as faces ainda tépidas de uma manhã fresca. Ao longe, um sol punha-se, uma onda quebrava na rocha, um comboio deixava um vago rasto calmo de fumo branco, sete palmos acima dos carris. Uma onda, de novo, quebrava a rocha. No murmúrio da onda, ao longe, ouvia-se alguém sussurrar o nosso nome. De pés enterrados no mar, ouvíamos o sopro das folhas chamar o nosso nome, à distância.

A certa altura, o globo começou a subir. Lenta, como uma âncora içada à força de mãos, a bola de sabão subia vagarosa pela água.

Lá fora, a gota mais pequena da tempestade caía ao sabor do vento, esquecida da hora em que o céu a lançara.

O globo aproximava-se da tona de água. A superfície da bola estava prestes a tocar a pele da água.

Nesse preciso momento, a gota mais pequena da tempestade tocou na superfície do globo.

O globo abriu-se.

Como uma bola de sabão, o globo desfez-se no nada que existe entre o ar e a água e o tropel do cavalo calou a tempestade e a luz de bronze da espada aclarou o dia.

Depois, fez-se o silêncio que precede tudo.

O tempo, finalmente, era chegado.