terça-feira, 19 de outubro de 2010

Por fim

São todos iguais, pelo que me deu para ver. Da primeira vez dizem-nos que não pensemos mais nisso, enquanto se começam logo a afastar, a virar costas e a encaminhar-se para a porta. Se os apanharmos mais a jeito, de uma segunda vez, dizem que é a profissão deles e logo se nos escapam entre os dedos. Para os mais resolutos, têm outras fórmulas, que passam por palavras como "obrigação" e até "ética", até chegarem a citar um juramento de um grego qualquer com um nome parecido com "hipócrita". Os médicos salvam-nos a vida, facto, e é a coisa menos hipócrita que alguma vezes nos fizeram, mas ainda assim não lhes podemos agradecer que eles não deixam.

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Foram dezenas os actos de amor que cometeram sobre mim. Dezenas de frases foram ditas, que não teriam sido ditas em circunstâncias normais, por dezenas de pessoas que decidiram não esperar mais para dizê-las. Foram dezenas de formas de expor a inegabilidade do bem que dezenas de pessoas me querem. Até esse estado de franqueza e pureza, que escapa às medidas que, normalmente, se tiram às palavras, se tornar ele próprio normal. Não é.

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Durante mais de sete horas, uma pessoas com quem troquei cinco palavras, juntou outras duas, debruçaram-se sobre o meu corpo e lograram remendar um buraco, em ponto de cruz, no mais recôndito dos seus cantos. Não pararam, não desistiram, não me largaram enquanto não me deixaram na porta escancarada do labirinto, de chave na mão, para que a pudesse trancar atrás de mim. Aqueles três nomes, Fátima Coelho, Carlos Costa e Nádia Gonçalves são, para mim, o sinónimo mais límpido de algo que já não tem por onde correr mal. Da tranquilidade.

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Seria idiota comparar o grau. Não sei medir o que custa ou o que vale mais, se as sete horas no bloco operatório se as mesmas sete que os meus pais, as minhas irmãs e o meu sobrinho esperam, sem arredar pé, sem que o pé arredado fosse sequer uma hipótese. Não se comparam valores de grau infinito porque são iguais na sua totalidade. Não se comparam absolutos.

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Quando era pequeno, tinha que atravessar um campo de cereais para chegar até à escola primária. Não o fazia sozinho. A minha mãe acordava sempre antes de toda a gente e preparava tudo para o dia que vinha aí. Depois, quando os outros se iam embora, pegava em mim, o mais pequeno e, não raras vezes, íamos a pé por esse campo até à escola. No final do ano, antes das férias, as espigas estavam no seu ponto mais alto e, nesse ponto mais alto, eram mais altas que eu. O carreiro, nessa altura, transformava-se num labirinto de que não se via o fundo e sabia que se me perdesse ali não saberia encontrar o caminho de volta. Mas não estava sozinho. A minha mãe seguia à minha frente, sempre em silêncio, de mão dada com a minha, a mostrar-me o caminho até à porta do labirinto, do outro lado, que ela já conseguia ver e eu não.

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Não sei comparar absolutos. São incomparavelmente sempre o mesmo. Não vale mais um que o outro. Mas, no labirinto sem fundo, três pessoas juntaram as mãos e uma delas, chamada Fátima Coelho, deu-ma a mim, enquanto dezenas de outras pessoas não a largavam. Sei que esse não foi um acto médico brilhante, ou melhor, não foi só um acto médico brilhante. Foi a própria definição de um acto de amor.

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No momento de maior fraqueza, quando me escapava a lágrima do medo, lá estava a mão do meu pai, a segurar a minha. No momento de fraqueza ainda maior, quando a minha mão não tinha força para procurar as mãos das minhas irmãs, elas correram a encontrá-la. E no fundo do labirinto dei a mão à minha mãe e, quando me escapava a lágrima da felicidade, fechei a porta atrás de mim.

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E suspirei "chegámos".