sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A morte de Jan Gerrit van Wassenaer

Já passava das 23h30 da noite de 29 de Outubro de 1723, quando o filho do Barão Jan Gerrit van Wassenaer irrompeu pela casa do famoso médico e cientista Herman Boerhaave. Trazia notícias do seu pais, nada menos do que o Almirante-mor da Armada Holandesa e Prefeito da província da Renânia, pelo menos da porção que cabia, na altura, às Províncias Unidas. E a revelação era chocante: o orgulhoso almirante estava agora no seu leito de morte.

Três dias antes, o oficial da marinha neerlandesa, dado que era aos prazeres da gula e ao consumo excessivo do álcool, brindara a companhia de alguns dos seus bons amigos com um dos seus banquetes. O efeito não foi surpreendente. Aliás, já não era a primeira vez que se sentira "pesado" após uma das suas abastadas refeições e tinha-se limitado a aplicar a receita habitual: vomitar o excesso cá para fora. Nas horas que se seguiram à refeição, tomou uma porção de um emético suave, um medicamento usado na altura para provocar o vómito, a que se seguiram outras formas mais tradicionais ainda de se livrar do problema, como a ingestão de 28 gramas de azeite e 180 gramas de cerveja (já nessa altura o seu efeito "emético" era bem conhecido). Perante o insucesso do gesto, o resoluto oficial tomou a decisão de forçar a nota e tomar mais quatro taças do medicamento, uma decisão que se revelaria fatal.

Ao primeiro vómito, sentiu uma forte dor no peito, sentindo-se como se alguma coisa se tivesse partido ou rompido no interior. Não tossiu nem perdeu a clarividência com que, aliás, terá declarado imediatamente que vinha chegando a morte e se pôs a rezar. Três dias depois, o famoso médico foi encontrá-lo deitado, inclinado para a frente. Havia passado esses últimos dias contorcendo-se e queixando-se de uma forte dor no peito e nas costas.

Tal como o pragmático homem do mar, o médico da casa também se cingiu às suas técnicas mais rotineiras, fazendo sangrar o paciência e dando-lhe compressas quentes, o que não terá resolvido o problema. Foi nessa altura que a família do Barão-Almirante decidiu contactar com o emérito (que não emético) rector magnificus e vice-Chanceler da Universidade de Leiden. O prof. Boerhaave chegou tarde de mais, encontrando o paciente já morto. É incerto se as técnicas aplicadas pelo médico da casa concorram para acelerar o desfecho. O certo é que esse desfecho era, tal como o pio almirante havia prontamente declarado, inevitável.

Tirando o chapéu de médico e colocando o de estudioso, pôde o professor proceder à autópsia, técnica científica cujos métodos ele próprio ajudara a desenvolver. Descobriu, com grande interesse, que o corpo do almirante ainda continha vestígios não digeridos do pato de três dias antes, assim como a presença de gases no abdómen e de líquidos espalhados pelo tórax que tiveram o efeito de colapsar um dos pulmões. No esófago, encontrou uma ruptura, pela qual conseguiu fazer passar um dedo, experiência invulgar que permitiu que todos quantos assistiam à operação repetissem.

Tinha sido, pela primeira vez na história, diagnosticado um síndrome raro que viria a ficar conhecido com o nome do insigne professor holandês, o Síndrome de Boerhaave, consistindo na ruptura espontânea de uma parte da parede do esófago, normalmente associada ao acto de vomitar forte e repetidamente. Durante o séc. XIX apenas mais cerca de 50 casos foram diagnosticados, com todos os pacientes a sofrer o mesmo destino do Almirante van Wassenaer. Foi só na década de '40 do séc. XX que um paciente foi, pela primeira vez, resgatado a esse destino através de uma operação cirúrgica que reparou a lesão.

Ainda hoje o acontecimento é considerado raro, sendo cinco vezes mais prevalente nos homens que nas mulheres e dando-se tipicamente em doentes entre os 50 e os 70 anos. A taxa de sobrevivência depende grandemente do diagnóstico atempado, dado que uma ruptura no esófago origina, invariavelmente, uma infecção bacteriana, que tende a avançar rapidamente. Mesmo hoje em dia, um terço dos doentes ainda só recebem um diagnóstico após a morte, sendo que em 90% dos casos não tratados, a infecção leva à morte entre as primeiras 24 e 48 horas. Sem a cirurgia adequada, a taxa de sobrevivência após 72 horas é praticamente zero.

Mas os avanços no tratamento desta condição têm sido notórios. Nos nossos dias, a taxa de sobrevivência nos pacientes operados com sucesso, dentro das primeiras 24 horas, cifra-se já nuns encorajadores 75%.