sábado, 30 de outubro de 2010

Candura, pt. 1

Encostou as costas à porta da rua, virado para o apartamento. Olhou-o pela última vez e deteve-se um minuto longo. A meia luz tinha-se deixado invadir pelo escuro da noite e o apartamento, quase sem mobília e sem pinturas ou retratos na parede estava mais cinzento e frio que de costume. Pelo menos foi isso que sentiu. Arrependia-se, agora de ter esvaído aquele casulo e de o ter tornado num reduto sem memória, porque a ausência de calor acabou por reprimir-lhe a vontade de ficar mais tempo.

Deteve-se aquele minuto longo, agora que o ia abandonar, enchendo os pulmões daquele ar confinado que julgou que lhe ia ser útil. Enfiou o gorro, que enterrou orelhas abaixo e abriu a porta.

À sua frente encontrou a sua vizinha que estava a chegar a casa. Era uma senhora de idade, já bem dentro dos setenta anos e que vivia ali sozinha. Era raro ouvir barulho no corredor por causa de visitas e as vozes que se ouviam através das paredes finas eram as da rádio.

Procurou afastar o olhar e não lhe disse nada. Mas, passados segundos, foi ela que encontrou os olhos dele e lhe falou.
- "Olá, boa noite", disse-lhe. "Tenho medo que a minha filha preferisse que eu já tivesse morrido".