domingo, 18 de julho de 2010

Farinha

A aldeia inteira seguia cabisbaixa numa procissão silenciosa até ao monte do Moinho. Nem sequer a condenada, que encabeçava o grupo, já resignada com a sua sorte, fazia o mínimo esgar de contestação ou revolta.
Apenas uma mulher falava mais alto e tentava impedir a marcha lenta do resto do grupo. "Mas ela não fez por mal! Não era isso que ela queria dizer! Será que não percebem!?", gritava na direcção no colectivo de juízes que, nas suas batinas, seguiam logo por trás da condenada. As outras mulheres da aldeia tentavam acalmá-la. "Vá lá, Fernanda, agora já não vale a pena. O que está dito, está dito. Não vale de nada estares agora a chover no molh... quer dizer, a sofrer por causa disto".
Chegaram finalmente ao Moinho. Era uma estrutura enorme e redonda, em que as paredes, em vez do branco cálido dos outros moinhos, era de um cinzento metálico e pesado. As pás, também elas de metal afiado, desciam numa cadência ritmada pelo uivo que faziam à medida que iam cortando a névoa às fatias.
Entraram todos para dentro do moinho, mantendo uma distância respeitável das pás. Alguém chegou a comentar que aquele aparato todo era desnecessário e que alguém ainda se podia aleijar com aquilo, comentário que mereceu um olhar de soslaio do colectivo de juízes e alguns reparos mais veementes por parte da população. "É preciso ter-se cuidado com o que se diz", disse um dos mais velhos. "A Polícia da Metáfora anda por todo o lado e eles são muito bons é a ler nas entre... eles são muito bons no que fazem, ou será que não sabe?" Sim, era claro que sabia, ou então porque é que estavam ali todos? O que se tinha limitado a fazer era apontar uma falha na segurança e tinha-o feito de forma muito clara.
O tom das reclamações de Fernanda tinha-se agora transformado em súplica. Só a condenada a pôde consolar: "Fernanda, não fiques assim. Foi um descuido da minha parte. Eu, que sou uma desbocada, tinha logo que me ir armar em esperta, já viste? Logo por causa daquele gajo".
Largou-lhe o braço e enfrentou a porta à sua frente, que dava acesso a uma câmara fechada. Depois de passar, o presidente do colectivo fechou a porta por trás de si e carregou num botão vermelho que havia ao lado. A Mó, que até aí estava parada ligou-se ao veio que estava a rodar e começou ela também no seu inexorável movimento numa lenta espiral descendente, ruminando tudo no seu caminho, câmara abaixo, precisamente no sentido dos ponteiros do relógio.

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Junto à fonte, conversava exaltadamente com Fernanda acerca do que lhe tinha acontecido no dia anterior.
- É inacredit... Quer dizer, ainda me custa acreditar, Fernanda. Com que então ele anda-me com outra e ainda me diz que só me veio contar porque tinha medo que a Polícia da Metáfora. Acreditas nisto? Não me contou porque achava que eu devia de saber. Sabes o que é que ele me disse? "Imagina que, um dia, eu te digo que vou comprar tabaco e que vou ter com ela. E se eles descobrem? E se eles me perguntam o que é que eu queria dizer com «comprar tabaco»?".
- Ao menos, disse-te para imaginares a situação. Pelo menos lembrou-se disso.
- Eu quero lá saber, Fernanda! Olha, sabes que mais, comigo é que ninguém faz farinha!

Fernanda deixou cair o garrafão de água e pôs a mão à boca. Ainda olhou à volta para ver se alguém as tinha ouvido. Mas, na aldeia, toda a gente se calou e olhou na direcção da fonte.