sexta-feira, 29 de maio de 2009

Trilha

"Memória é que nem trilha no mato".

Há coisas que fazemos durante anos, primeiro a medo e depois com um orgulho e confiança que olham para esse medo infantil quase de esguelha. Como uma trilha, que se vai abrindo no meio do mato, passagem após passagem. Das primeiras vezes que repetimos a trilha, nem se consegue perceber o caminho. Provavelmente, pensamos anos mais tarde, das primeiras vezes que a fizemos, tomamos direcções diferentes, tivemos gestos diferentes, olhamos de maneira diferente para o que estava diante dos nossos olhos. Depois há uma árvore que começamos a atravessar todos os dias, que marca o ponto em que "já não falta tudo", um riacho que atravessamos mais ou menos a meio, o descampado já no final, com a trilha já bem traçada e bem pisada no chão atrás de nós.

Um dia, os nossos passos mudar de destino e deixamos a trilha, que vai sendo consumida aos poucos. A relva em volta começa a estender-se a medo, receosa ainda do regresso daquela sola aterradora. O caminho vai-se voltando a confundir com o mato e a memória dele desaparece das nossas mentes.

Há pouco tempo meti-me no caminho que fazia para chegar à escola, quando era criança. Entretanto, teria passado mais de uma década desde que a fiz e julgo que nunca a tinha feito de carro sozinho, muito menos de noite. A trilha, na minha cabeça, ainda existia mas estava coberta de erva daninha e mal se distinguia da escuridão do mato à volta. Quando ainda estava a caminho da estrada, tentei ver a trilha inteira à minha frente: a árvore onde pousava a mão de passagem, o riacho, o descampado final. E entre estes marcos faltava muita coisa. Eram imensos os pontos negros na minha trilha, os momentos que vivi em cada em cada passo, a relação que estabeleci com cada pedra.

Inesperadamente, não senti medo por me internar no mato profundo, no meio da noite. Senti a excitação e a antecipação de saber como chegar a dois passos daquele buraco negro na minha mente e a certeza de saber que a trilha irromperia na minha cabeça, nem que fosse preciso voltar a rasgar esse veio nos meus miolos. Que chegaria com a força da lembrança de um cheiro ou de um sabor, ou de um afago da palma de uma mão perdida. E assim foi: a cada curva, a minha mente era inundada das recordações da contra-curva que se seguia e que já não tinha esquecido: A casa do senhor com a porta que dava directamente para a estrada. O meu pai dizia sempre: "um dia vai acordar com um carro deitado ao lado dele na cama." Depois, o depósito das águas, com a moradia do caseiro, o pai do meu companheiro de carteira na escola. Por fim, a curva à direita, para a vila, e os últimos metros.

Sozinho no carro, entortei ridiculamente os olhos para onde se sentariam os meus pais, à minha frente. Assombrou-me a ideia de um altar de sacrifício no final da trilha. "Adeus", disse ao chegar ao portão da escola, como se repetisse o ritual. "Até à próxima despedida."