quarta-feira, 6 de julho de 2005

Um 5 de Julho qualquer, Parte 7 - Casa

Muitas vezes cuspi-lhe no nome. Cometi o insulto mais torpe de a chamar óbvia.

Mas a cidade é uma explosão de cor e de luz e de calor que invade todos os recantos como uma Fé, até a sombra ter mais luz do que a luz dos outros sítios. O calor entranha-se na pele até refazê-la de escuro e sermos nós também um bocado da cor, da luz, da cidade. O casario estreito de um bairro, a voz que se levanta e paira sem esforço na língua dos meus olhos fechados...
Em Lisboa, tudo sou eu.
O sítio para onde vou sempre que estou a regressar.
Porque amá-la é amar-me.
É esta a minha casa.

Carlos Miguel Maia

Um 5 de Julho qualquer, Parte 6 - Un Uomo

Quando Adolf Hitler sobreviveu às terríveis provações da Guerra de Trincheiras entre 1914 e 1918, ficou com a ideia de que a Providência lhe tinha reservado qualquer coisa de maior para fazer. Para mal dos nossos pecados, lá nisso teve razão.

Quando penso em tudo o que aconteceu entre mim e a Viviana também gosto de encontrar um traço em tudo quanto nos aconteceu por acaso.
O dia estava disposto a isso: voltar a mostrar-me que a Providência, pelo menos ela, ainda não está pronta para me abandonar.
Fui à Ler Devagar no Bairro Alto, para falar com o José Pinho, o dono de uma casa de livros mortos que me tinha dado uma entrevista (e que acabou por ser a primeira coisa de minha autoria a ir para o ar). Queria dar-lhe um CD com a cópia do meu trabalho.
Fui com a sensação de que a Rua de São Boaventura, que ocupou tanto destes meus últimos dias ia ser o último posto de uma viagem... e foi o primeiro de outra.
Entrei, demasiado cedo para encontrar o José Pinho, e fui à caixa dizer quem era e ao que vinha. Riram-se para mim, talvez por serem simpáticos, talvez por me terem ouvido na rádio.
Coloquei a caixa do CD sobre a mesa, mesmo ao lado de um livro que estava quase a deixar de existir, um daqueles de que se falava na entrevista, de que não existem mais cópias em lado nenhum, de que as próprias reservas das editoras se estão a esgotar,
um livro de fundo que quando fosse comprado passaria a ser um livro defunto.
Prestei atenção:

Um Homem, de Oriana Fallaci, o livro favorito da Viviana, na versão portuguesa. O último exemplar, disseram-me.
Era aquele homem... aquele homem por cujas medidas uma vez fui tirado.
E era ela, a Providência, a rir-se outra vez para mim, talvez por ser simpática, talvez por me ter estado a ouvir este tempo todo.

«Chegou a hora da partida. Cada um de nós segue o seu caminho: eu para a morte, e vós para a vida. Qual dos dois seja melhor,
só Deus sabe.
Platão, Apologia de Sócrates.»


Carlos Miguel Maia

Um 5 de Julho qualquer, Parte 5 - Táxi

!Aviso: O conteúdo deste post é susceptível de ferir as sensibilidades menos preparadas!

Não hajam dúvidas, os taxistas não são a voz do povo. Se forem a voz de qualquer coisa é do que de mais canceroso o povo tem.
Ontem, atrasado de mais, tive que apanhar um táxi para ir à TSF entregar o material, o currículo e outras coisas.
A conversa começou de maneira insuspeita: o tempo... está um calor que não se pode, depois deste serviço vou para casa...
E agora perdoem-me, mas não estou com disposição para eufemizar o discurso directo:
Vou para casa ver um filme do Frota e bater uma punheta antes que chegue a patroa.
Escuso de falar do meu complexo histérico outra vez. A verdade é que só me apetecia rebentar.
Entre o novo ar condicionado móvel que tinha custado 400 euros mas que se podia pôr no canto da sala encontado à parede, lá continuava.
Estas obras nos Terreiro do Paço, realmente... Antigamente, quando se passava aqui no Cais das Colunas até se podia ver a cona às estrangeira! É verdade! Agora com estas obras...
Uma vez passei aqui, estava uma senhora no carro, e eu inclinei a cara para o passeio onde estava uma bifa sentada e disse: "
Já reparou senhora, esta gaja não tem calcinhas!"
Podia ser que o meu silêncio o fizesse parar... não fez.
A primeira gaja que comi era uma puta. No meu tempo - e isto foi em 1955, há 49 anos portanto - só custava dois e quinhentos. Eu tinha 14 anos e era muito envergonhado (ninguém diria) e fui ter com ela e segui-a até que ela me perguntou:
"O que é que queres?
Quero ir contigo...
Queres ir comigo onde?
Quero ir contigo...
Queres ir comigo?
Quanto é que levas?
Depois ele enunciou os preços de algumas coisas que não percebi bem o que eram, ou porque as chamou com nomes que já não se usam ou porque não estou muito dentro do slang da prostituição.
Só percebi bem uma coisa:
"Ir à cona são dois e quinhentos."
Porra! Paguei logo.
Epá, aquilo não deu para nada. Dei-lhe duas bombadas e vim-me logo... e dois e quinhentos naquela altura era dinheiro...
Mas o que me impressionou na gaja era que não tinha pintelheira. E eu perguntei:
"Houve lá. Mas tu não tens pêlos... no sexo?
Não, rapei-os."
E eu não percebi o que ela queria dizer. Uns dias depois fui ter com o meu irmão, que era mais velho que eu, Deus o tenha, e perguntei-lhe.
"As gajas não têm pintelheira?

Têm."
E ele levou-me a uma antiga casa de putas ali no Martim Moniz, que agora já não existe (e falava com a mesma nostalgia com que se fala do pregão da varina que já não volta mais). Eu não podia entrar porque só tinha 14 anos e não era permitido, mas o meu irmão foi lá dentro e arranjou-me uma que ele já devia conhecer, e que tinha uma pintelheira tão grande que nem se via a cona.
E foi assim que fiquei a saber que as gajas também têm pintelhos.
Mais silêncio da minha parte.
Um dia destes estava com a minha patroa e a minha filha que estava a dar banho à menina, a minha neta, que só tem um aninho. E quando a minha filha lhe estava a pôr o pó de talco reparei que a pequena não tinha grelo. Fui logo perguntar à minha patroa:
"Então a miuda não tem aqueles lábios... no sexo?
Claro que não, então ainda não está formada."
E foi assim que descobri que as miudas pequenas, para além de não terem pintelhos, também não têm o grelo. Pronto, só têm aqueles lábios grandes, mas aquela parte assim mais pequenininha (e fazia gestos com a mão, como se lhes tocasse), essa parte não têm.
Estávamos a chegar à rotunda antes da Matinha, com aquela estátua ao 25 de Abril, quando ele me diz para rematar.
Hoje em dia é que vocês têm sorte. Fodem para aí a torto e a direito. No meu tempo, se fodêssemos uma gaja tínhamos que casar.
A não ser que fosse puta. Aquela puta sem pintelhos, fodia-a tantas vezes...
Mas o meu filho é com qualquer gaja e não interessa. As gajas ligam-lhe a toda a hora, mas ele também é um rapaz bonito.
Quando fui eu, olha... fodi a minha patroa e depois tive que casar com ela.

Por estranho que pareça, nesse momento e só nesse, até o invejei.

Carlos Miguel Maia

terça-feira, 5 de julho de 2005

Um 5 de Julho qualquer, Parte 4 - Leopardo

Aos poucos lá me vou conseguindo lembrar de detalhes que podem explicar porque é que alguém havia de ter gostado de mim.
Os primeiros passos ainda foram pesados e pouco ágeis,
mas ao fim da tarde já estava a subir escadas, dois ou três degraus de cada vez,
à moda de um leopardo.

Carlos Miguel Maia

Um 5 de Julho qualquer, Parte 3 - Guelinha

Espero que não te importes que te chame assim...

Sem me aperceber, entrei dentro do desmando que me recomendava para as semanas seguintes.
Comecei a vasculhar coisas, com objectivos remotos e quase indiferentes, sem força senão para esperar que o destino me dissesse o que pensar, e onde.

Eis senão quando, no momento em que ninguém me persuadiria de que tal coisa alguma vez voltasse a existir, me ligou
alguém com saudades minhas.

Carlos Miguel Maia

Um 5 de Julho qualquer, Parte 2 - Bússola

Hoje perdi-me. A imagem de uma bússola sem estrela polar não me abandonou a cabeça. Se ela se sente perdida como uma bússola que ficou sem o norte, quão perdido se sentirá o norte sem a bússola? Substancialmente perdido.

O único propósito de fosse o que fosse que eu fizesse com alento passava por estar com ela, por fazê-la feliz, por saber que ela me esperava e que ficaria com ela a meu lado, sempre.
Dedicarmos uma felicidade a uma outra pessoa humana é um risco tremendo. Desde que estou com ela sabia que perderia a substância do meu motivo se ela não estivesse à altura do desafio de amar alguém. Esse risco vale a pena, asseguro-vos, porque quando as coisas correm bem, até chegamos a perceber que de nada mais serve a existência das pessoas no universo.
Pois, mas sem ela... Sem ela não existe nada que eu queira fazer... conseguem imaginá-lo? Uma pessoa para quem não exista nada que se faça por gosto...
Perdido dela, perdi a única coisa a que chamo casa. É por isso que a viagem que se avizinha é tão importante e tão desmandada. Partirei deste sítio em que não me reconheço - e digo-o porque nem sequer me reconheço como lusofono ou português - e vou até ela. Depois ela partirá e deixar-me-á à deriva, em busca de uma casa que não tenho, sem um bilhete de regresso marcado para lado nenhum.
Não sei o que farei, mas imagino que andarei... quem sabe mesmo muito.

Carlos Miguel Maia

Um 5 de Julho qualquer, Parte 1 - TSF

A minha despedida da TSF foi tudo o que a minha despedida da Viviana devia ter sido. Logo porque foi feita de peito aberto, cara-a-cara com as pessoas que me queriam lá e com a que não o podia consentir.
Desta vez sim: era o momento certo para acabar. Mesmo tendo a certeza que podia ter continuado tivesse eu sido diferente... tivesse ela....
A verdade é que o nosso pavio foi-se esfumando aos poucos de uma maneira óbvia para ambos e, mesmo se nos últimos dias ainda ouve umas recaídas e uns surtos de reconciliação, sinto que este era o momento de sair, de procurar melhor dentro de mim talvez, de voltar mais tarde espero,
mas de sair.
Fiquei a saber que, afinal, também sei acabar uma relação.

E o fim foi magnífico. São raros os momentos de aperto no coração em que temos a coragem de dizer tudo aquilo de que nos arrependeríamos de não ter dito.
A TSF também foi isso em mim: a prova de que a relação com a Viviana não foi um acidente; de que demoro um tempo desconfortavelmente longo para me abrir às pessoas,
mas de que não me vou voltar a esconder delas, de que tenho coisas a dizer-lhes e digo-as.

Carlos Miguel Maia

domingo, 3 de julho de 2005

Quem és tu romeiro?

Alguém que tenha a bondade de responder...