quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Beijo

Tinha acabado de acender o lume para o jantar, quando um anjo lhe entrou pela janela. Encontrou-a de cócoras, erguendo-se lentamente, como se aqueles olhos azuis, aquelas asas branquíssimas, aquela visita celestial não fosse a coisa mais inesperada do mundo. Os olhos dela preparam-se para ouvir o que lhe vinha ser anunciado. “Avé Ma…”, e deteve-se sem conseguir concluir a frase. Era nesses olhos que viviam, lado a lado, o temor e a esperança daquela visita. Eram claros como a luz última do sol que beija a superfície verde da água, mas carregavam em si já o cinzento que anuncia a noite primeira.

“E você, como é que se chama?”, perguntou a mulher ao anjo. “Ghe…Ga...”, mais uma vez não conseguiu avançar um som que fosse à vista dos seus olhos. Recompôs-se decidido que estava, agora, a evitá-los e a olhar directamente para um ponto negro no chão. Voltou ao discurso que tinha sido preparado.

- Avé Maria, cheia de graça, trago-te uma boa notícia. Depois de fazer o homem, de lhe soprar para o nariz, de lhe falar pelos lábios, é Deus quem se faz homem, em Pessoa. Tu carregarás no teu ventre o Seu Filho.

A mulher cobriu a barriga com as mãos e baixou os olhos. Os seus olhares encontraram-se no mesmo ponto negro do pavimento. Quem desfez esse encontro foi o anjo que se aproximou lhe alcançou o queixo caído. Ergueu-o lentamente na sua direcção, deixando exposto o pescoço fino. Ela era tão completamente bela, a sua pele tão delicadamente suave, o ser perfume tão frágil e tão imensamente forte. Olharam-se lábios nos lábios, por um instante longo, enquanto o verde e o azul se perderam um no outro e deram a cor ao mar.

Beijaram-se.

Uma voz rouca como uma rocha levantou-se do céu e deixou a questão: “É com um beijo que me trais, Gabriel?”. Ele sabia bem que não.