terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

David

"Homem andando", Ernesto de Fiori

Os calções tinham sido cortados a partir de uma calças de algodão
navy blue que já estavam tão ruças que iam começar a servir de pijama. Mas precisava de uns calções para ir jogar à bola e ainda nem sequer tinha um colchão que pudesse chamar meu, quanto mais equipamento desportivo. Por isso, peguei na tesoura e fabriquei-os tal como os imaginava, pelo joelho, descobrindo apenas a perna abaixo do joelho, o gémeo tronco térreo lançando a sua seiva sobre o pé raiz. Como aquele da estátua. De peito esguio, braços recolhidos e pernas de bronze. Na estátua de bronze, só as pernas, com os gémeos magníficos, como rochas, são de bronze. Brasileiro.

Paro de correr no local marcado. O mar, que tinha olhado de soslaio, está do meu lado esquerdo. Viro-me e enfrento-o. Avanço para as ondas, que não me tocam. Headphones nos ouvidos e ipod amarrado à braçadeira. O braço descai, sem peso, ao longo do tronco. O outro segura uma camisola sobre o ombro, ostensivamente. As pernas-terra afastam-se muito ligeiramente. Há graça quando levanto os olhos sobre o mar e vinco-os no azul-sobre-azul, como um desafio ao murmúrio que ainda e sempre lhe oiço. Cumprirei o desígnio que o vinco me traça. Isso e menos do que isso. Como um David. Europeu.

"David", Michelangelo Buonarroti

Mas há mais.