quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A engenheira que arranja pessoas

Esta história não é sobre mim. Ou melhor, não é só sobre mim. Quando tinha dois anos, a Enfermeira Catarina já sabia o que queria fazer quando fosse grande. Quando lhe perguntavam, tinha a resposta na ponta da língua: "Quero ser uma engenheira que arranja pessoas". Esta história também não é só sobre ela. Mas é muito mais sobre ela do que é sobre mim.

Na noite de 12 de Agosto de 2010, depois de comer de gosto uma sopa de letras preparada por um muito jovem casal que havíamos conhecido nas ruas de Odeceixe, lançámo-nos, eu e uns amigos, onde se incluíam o António José Miguel e a Elsa Vila Lobos, no prato principal. Depois de algumas garfadas, já um pouco custosas, deu-se um acidente: um pedaço de carne ficou impactado, sem conseguir passar pelas paredes do esófago, até ao estômago. Dava-se, assim, início à "Operação Entremeada".

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Morrer

Um anjo bailava, arrancando bocados do peito. "Diz morrer", pediu-lhe uma voz, "diz só morrer".
O anjo ondulava, estendendo agora os braços pelo ar, como asas.
Morrer, morrer,
morrer morrer
morrermorrer, repetiu, até a voz se desfazer
e dar à luz.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Lágrima

As ondas do mar elevavam-se acima da linha do horizonte, na sua tentativa de calar o murmúrio que vinha do mar. Eu ouvia-as, mergulhado no oceano, sem pé, só com a cabeça de fora. Ouvia-as e olhava para o fundo do mar que persistia para além delas, antes delas, levando o meu nome para longe.

Na face dos olhos húmidos, rolei pele abaixo, abrindo um sulco de sal e sangue e terra vermelha. Uma lágrima. E desfiz-me do sulco da cara voando milímetros de ar até cair nas ondas do oceano.

Percorri mil mundos em mil dias, deixei-me perder por todos os caminhos, vendado todos os olhos, até me esquecer de mim. Num uivo de raiva, ergui-me do mar e soprei na vela que quebrou o mastro e puxei pela onda que fez tombar o barco. Um homem caiu, sozinho, ao mar.

Depois, voei para a costa cinzenta e entrei na capela vazia. Ou quase. Diante da única vela acesa, uma mulher vestia de negro e rezava num soluço. Soberba, esquecida de mim, rodopiei num silvo que apagou a vela. A mulher chorou, sozinha, uma única lágrima. Como eu.

Lembrei-me de mim e, uma lágrima, chorei.

Saí pela fresta azul da porta e fui. Não tinha o traço dos mil dias desde que tinha saído da minha casa, deslizando pelo rosto, naquela sulco de sangue e sal e terra vermelha. Então vaguei por mundos escuros e frios, até chegar à cidade. Encontrei um palácio de gelo. Entrei por uma janela aberta, fazendo voar uma cortina de veludo vermelha.

Numa tela, um homem regressa a casa. A túnica dourada pesa-lhe tanto nos ombros que se vê ajoelhar. Não chega a ver o sorriso calmo do pai, que lhe afaga a cabeça. O sorriso não se pronuncia porque, agora, voltou a ter todo o tempo do mundo para sorrir. Não chega a ver o sorriso mas é invadido por ele, até se formar a promessa de uma lágrima nova.

Foi nesse momento que voltei a mergulhar. Enterrei-me na fibra da tela e despontei no canto do olho. Rolei pela face suada e sofrida, desfazendo-me, finalmente, num sulco de terra, na lágrima prometida.