quarta-feira, 30 de junho de 2010

Alterações

Olhou-a por cima dos óculos de ler.
- Então vamos lá ver. Ok, és a filha mais velha da minha irmã. Certo. Data de nascimento: 15 de Março de...
- 2001.
- 2001? A sério que nasceste em 2001?
- Sim.
- Ok, muito bem, o que quer dizer que nesta altura tens oito, aliás, nove, nesta altura tens nove anos. E andas na terceira classe, certo?
- Passei agora para o quarto ano.
Num formulário da empresa, que no canto superior direito trazia o acrónimo do seu nome e que tinha o título de "Briefing de Alterações" anotou calmamente o ano escolar, fazendo menção de escrever "Ano", em vez de "classe", para não se voltar a esquecer. Afinal de contas, a melhor maneira de começar era ir-se habituando ao jargão.
- E tens tido boas notas?
- Tive bons a tudo, menos a Estudo do Meio, em que só tive "Suficiente".
- Ok, muito bem. E então porque é que só tiveste "Suficiente"?, perguntou, enquanto voltava a soerguer o olhar por cima dos óculos, só para praticar.
- Porque não gosto muito, respondeu, encolhendo os ombros.
- Muito bem. Havemos então de ver se damos a volta a isso, não é? E que mais?

-

A cama de casal, branca, de lençóis brancos e edredon branco, era um reflexo do resto do quarto. A única excepção, agora, era o berço em madeira de contraplacado castanho, com um ursinho no alto da cabeceira, que estava encostado do lado esquerdo da cama. Não ouviu a porta ranger, apenas uma voz soluçante.
- Tenho saudades da minha mãe.
Falava o mais rapidamente que podia, talvez pela pressa de incluir uma frase completa entre os solavancos na garganta, talvez pela vergonha de não os conseguir impedir.
- Vem cá.
Trepou pelo final da cama, colocando-se entre o tio e o berço.
- Vá, não faças barulho que ainda o vais acordar.
Tentou acalmar os soluços interpondo-lhes um suspiro longo.
- Porque é que ela tinha que morrer?, disse, antes que uma nova enxurrada lhe voltasse a inundar a voz e a tapar os olhos.
- Ela não morreu. A minha irmã, agora, vive aqui dentro.
E apontou para o seu próprio peito. Ela firmou a face, de olhos pregados nos olhos dele.
- E, mais do que em qualquer outro sítio à face da terra, ela agora vive aqui, acrescentou, apontando para o peito dela.

Fez um sorriso ténue, enquanto fungava. Virou-se e enconchou o seu corpo no dele, antes de adormecer.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Pessoas cumprimentam-se com beijos de plástico

Pessoas cumprimentam-se com beijos de plástico. Homens abraçam crianças de plástico na estrada de plástico que dá para a escola. Jovens, com cabelos e corações de plástico, beijam jovens de plástico que, de cabeças deitadas nos seus colos, olham horizontes de plástico. Homens, jovens, distantes, morrem na televisão mortes de plástico.

A luz do mar da tarde inunda-me olhos. Fecho-os. Sobra a cor-de-laranja-rosa. Sobra um beijo tépido, em cada um deles.