quarta-feira, 17 de junho de 2009

Cais das Colinas (dedicado a Alexanda Alpha)

O vento voava-lhe nas asas. Os turistas, distraídos pelo som arrastado do jazz, enchiam o betão que dava para o Cais das Colunas, sentados em cogumelos de plástico de onde brotavam árvores. Durante anos pilotara aquele avião. E durante os meses das férias a rotina era simples: festa no Coconuts, anúncio atrelado à cauda do aparelho, partida de Tires e paragem em todas as capelinhas: Parede, Carcavelos, Sto. Amaro de Oeiras e depois até à outra banda para fazer um bocado das praias da Costa. Um homem, de bigodes calados e mãos nas cruzes, olhava para o mar e tentava pensar em alguma coisa. Um rapaz enchia de areia molhada um balde com o fundo aos quadradinhos. De repente, seguiu os ouvidos até ao céu e viu passar a avioneta. “Co-co-nu-ts. Co-co-nu-t(e?)s”, leu de si para si. “Ó pai, o que é que são cocó-nutes?”, diparou, não evitando uma gargalhada sem o dente da frente. Não era a mais excitante das vidas, é certo, principalmente se pensarmos que tinha deixado a escola de engenharia para se dedicar aos aviões. Não esperava uma vida de Robert Redford, mas ter que aturar sempre o mesmo empresariozinho a ir de “jacto privado” até Bragança, todas as semanas. Acabadas as praias deste lado, virou o avião para atravessar a boca larga do rio. E, de todas as vezes, a mesma piada: “olha-me para aqueles desgraçados lá em baixo. De Lisboa a Bragança já não são nove horas de viagem”, dizia entre risos escarninhos para as “formiguinhas” que seguiam pelo carreiro da A1. “‘Tão mesmo velhos os Xutos, pá. Ainda me lembra quando os gajos saíram com essa música”. Lançou um olhar lânguido sobre o farol do Bugio, ali, abandonado às suas “chicotadas de luz na escuridão”, como já dizia Miguel Torga. Mandar chicotadas em plena luz do dia deve ser ainda mais triste, pensou.

Foi aí que deu uma guinada que lançou o avião numa curva apertada, como se uma das chicotadas do farol se tivesse prendido à asa. A adrenalina inundou-lhe a memória das acrobacias dos primeiros aviadores do princípio do século, a passarem com os aviões por dentro do Arco do Triunfo. Mesmo à sua frente, a ponte 25 de Abril cravou-lhe um sorriso no canto do lábio. Não foi até se virar para o Cais das Colunas que os turistas repararam no avião. “What the hell?”, blasfemou um deles, ao que alguém parece ter-lhe respondido com outra pergunta: “Coconuts?”. Todas as semanas, pensou, todas! Sem entender muito bem se uma chuva de cocos estava prestes a banhar aquela manhã do sol, os turistas levantaram-se dos seus cogumelos e começaram a recuar a passos cada vez mais rápidos. O avião baixou tanto que formou uma nuvem de espuma ao seu redor e passou a toda a velocidade, com o trem de aterragem a cortar a meta que imaginou entre os globos que encimam as Colunas. Quando olhou para a frente, teve que fazer uma pirueta para evitar bater na estátua a cavalo, que o fez também passar acima do Arco da Vitória. O toldo de plástico, esse, a esbracejar furiosamente nas costas, acabou por ir dar uma estalada na cara do Rei-menino que o fez abanar da sela. A Rua Augusta parou de espanto antes de começar a correr aos gritos como se mais alguma onda gigante se aproximasse. Olhou à volta, à procura de um lugar para estacionar, até que viu desenhar-se à sua frente uma avenida de asfalto perigosamente ladeada de obstáculos frondosos e verdes. Deu uns safanões para baixo a anunciar as intenções, e os carros, como se tivessem ouvido uma ambulância, correram a sair-lhe da frente. Quando já se estava a acabar a avenida, as rodas beijaram finalmente o chão. Carregou nos travões a fundo, usando ainda parte da rotunda para desacelerar. Em vez de parar ao pé do parque, acabou de fazer rotunda com a mão por fora do vidro acenando à multidão muda, numa última volta de consagração.