terça-feira, 28 de setembro de 2010

Lágrima

As ondas do mar elevavam-se acima da linha do horizonte, na sua tentativa de calar o murmúrio que vinha do mar. Eu ouvia-as, mergulhado no oceano, sem pé, só com a cabeça de fora. Ouvia-as e olhava para o fundo do mar que persistia para além delas, antes delas, levando o meu nome para longe.

Na face dos olhos húmidos, rolei pele abaixo, abrindo um sulco de sal e sangue e terra vermelha. Uma lágrima. E desfiz-me do sulco da cara voando milímetros de ar até cair nas ondas do oceano.

Percorri mil mundos em mil dias, deixei-me perder por todos os caminhos, vendado todos os olhos, até me esquecer de mim. Num uivo de raiva, ergui-me do mar e soprei na vela que quebrou o mastro e puxei pela onda que fez tombar o barco. Um homem caiu, sozinho, ao mar.

Depois, voei para a costa cinzenta e entrei na capela vazia. Ou quase. Diante da única vela acesa, uma mulher vestia de negro e rezava num soluço. Soberba, esquecida de mim, rodopiei num silvo que apagou a vela. A mulher chorou, sozinha, uma única lágrima. Como eu.

Lembrei-me de mim e, uma lágrima, chorei.

Saí pela fresta azul da porta e fui. Não tinha o traço dos mil dias desde que tinha saído da minha casa, deslizando pelo rosto, naquela sulco de sangue e sal e terra vermelha. Então vaguei por mundos escuros e frios, até chegar à cidade. Encontrei um palácio de gelo. Entrei por uma janela aberta, fazendo voar uma cortina de veludo vermelha.

Numa tela, um homem regressa a casa. A túnica dourada pesa-lhe tanto nos ombros que se vê ajoelhar. Não chega a ver o sorriso calmo do pai, que lhe afaga a cabeça. O sorriso não se pronuncia porque, agora, voltou a ter todo o tempo do mundo para sorrir. Não chega a ver o sorriso mas é invadido por ele, até se formar a promessa de uma lágrima nova.

Foi nesse momento que voltei a mergulhar. Enterrei-me na fibra da tela e despontei no canto do olho. Rolei pela face suada e sofrida, desfazendo-me, finalmente, num sulco de terra, na lágrima prometida.