segunda-feira, 7 de março de 2011

Bruschetta de azeite de tartufo

- Abre a boca e fecha os olhos.
Os olhos entrefecharam-se, respondendo-lhe de soslaio.
- Vá, confia em mim. Eu sei que tu sabes que quando fechas os olhos desligas-te de tudo o que acreditas ser verdade. Só porque não suportas a ideia de não ser. Que quando fechas os olhos, vês melhor. Que vês melhor com os ouvidos, o nariz. E a língua.

Fechou os olhos a medo. Avançou os lábios frios pelo ar tépido da cozinha. Sentiu a crosta quente do pão entrar-lhe pela boca e mordeu o miolo levemente torrado, levemente molhado. A tensão que lhe prendia as pálpebras uma à outra aliviou-se quando o líquido em que o pão estava embebido lhe escorregou pela língua. Deixou o visco verde suave invadir cada poro, lentamente. E perdeu-se na sensação que lhe untava o peito. Absorta naquele momento, desprendeu os nós todos da face e sentiu o silêncio único daquele corpo de sabor a entrar-lhe corpo adentro.

Nesse momento, na ponta dos lábios que já não perscrutavam o ar, sentiu os lábios dele.
Abriu os olhos na lentidão do beijo.
- Um beijo qualquer um rouba. O problema está no que vem a seguir.

Olhou-o de frente, de olhos calmos, presentes, tépidos de volta. Prenhes de uma nova escuridão.
- Abre a boca e fecha os olhos.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

David

"Homem andando", Ernesto de Fiori

Os calções tinham sido cortados a partir de uma calças de algodão
navy blue que já estavam tão ruças que iam começar a servir de pijama. Mas precisava de uns calções para ir jogar à bola e ainda nem sequer tinha um colchão que pudesse chamar meu, quanto mais equipamento desportivo. Por isso, peguei na tesoura e fabriquei-os tal como os imaginava, pelo joelho, descobrindo apenas a perna abaixo do joelho, o gémeo tronco térreo lançando a sua seiva sobre o pé raiz. Como aquele da estátua. De peito esguio, braços recolhidos e pernas de bronze. Na estátua de bronze, só as pernas, com os gémeos magníficos, como rochas, são de bronze. Brasileiro.

Paro de correr no local marcado. O mar, que tinha olhado de soslaio, está do meu lado esquerdo. Viro-me e enfrento-o. Avanço para as ondas, que não me tocam. Headphones nos ouvidos e ipod amarrado à braçadeira. O braço descai, sem peso, ao longo do tronco. O outro segura uma camisola sobre o ombro, ostensivamente. As pernas-terra afastam-se muito ligeiramente. Há graça quando levanto os olhos sobre o mar e vinco-os no azul-sobre-azul, como um desafio ao murmúrio que ainda e sempre lhe oiço. Cumprirei o desígnio que o vinco me traça. Isso e menos do que isso. Como um David. Europeu.

"David", Michelangelo Buonarroti

Mas há mais.

sábado, 30 de outubro de 2010

Candura, pt. 1

Encostou as costas à porta da rua, virado para o apartamento. Olhou-o pela última vez e deteve-se um minuto longo. A meia luz tinha-se deixado invadir pelo escuro da noite e o apartamento, quase sem mobília e sem pinturas ou retratos na parede estava mais cinzento e frio que de costume. Pelo menos foi isso que sentiu. Arrependia-se, agora de ter esvaído aquele casulo e de o ter tornado num reduto sem memória, porque a ausência de calor acabou por reprimir-lhe a vontade de ficar mais tempo.

Deteve-se aquele minuto longo, agora que o ia abandonar, enchendo os pulmões daquele ar confinado que julgou que lhe ia ser útil. Enfiou o gorro, que enterrou orelhas abaixo e abriu a porta.

À sua frente encontrou a sua vizinha que estava a chegar a casa. Era uma senhora de idade, já bem dentro dos setenta anos e que vivia ali sozinha. Era raro ouvir barulho no corredor por causa de visitas e as vozes que se ouviam através das paredes finas eram as da rádio.

Procurou afastar o olhar e não lhe disse nada. Mas, passados segundos, foi ela que encontrou os olhos dele e lhe falou.
- "Olá, boa noite", disse-lhe. "Tenho medo que a minha filha preferisse que eu já tivesse morrido".

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Casa

Demorei algum tempo a chegar a casa.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Em frente

Se forem ao Cais da Rocha, vão encontrar um barco velho chamado Príncipe Perfeito. O barco balança lentamente, ancorado ao cais, marrando contra as paredes numa senilidade cega, de velho.

Se olharem para a frente, encontram outro barco, bem mais jovem. Olhem com atenção e vejam como tem o pavilhão sul africano e, por baixo do nome inenarrável, está o de uma cidade: Cape Town.

De repente, olhem de novo para o barco velho, de amuras beijando as paredes do cais e quase que se ouvirão a voz do príncipe velho dizer:
- Soltem-me. Soltem-me só mais uma vez. Soltem as amarras, só um bocado, e vocês ainda vão ver.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Por fim

São todos iguais, pelo que me deu para ver. Da primeira vez dizem-nos que não pensemos mais nisso, enquanto se começam logo a afastar, a virar costas e a encaminhar-se para a porta. Se os apanharmos mais a jeito, de uma segunda vez, dizem que é a profissão deles e logo se nos escapam entre os dedos. Para os mais resolutos, têm outras fórmulas, que passam por palavras como "obrigação" e até "ética", até chegarem a citar um juramento de um grego qualquer com um nome parecido com "hipócrita". Os médicos salvam-nos a vida, facto, e é a coisa menos hipócrita que alguma vezes nos fizeram, mas ainda assim não lhes podemos agradecer que eles não deixam.

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Foram dezenas os actos de amor que cometeram sobre mim. Dezenas de frases foram ditas, que não teriam sido ditas em circunstâncias normais, por dezenas de pessoas que decidiram não esperar mais para dizê-las. Foram dezenas de formas de expor a inegabilidade do bem que dezenas de pessoas me querem. Até esse estado de franqueza e pureza, que escapa às medidas que, normalmente, se tiram às palavras, se tornar ele próprio normal. Não é.

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Durante mais de sete horas, uma pessoas com quem troquei cinco palavras, juntou outras duas, debruçaram-se sobre o meu corpo e lograram remendar um buraco, em ponto de cruz, no mais recôndito dos seus cantos. Não pararam, não desistiram, não me largaram enquanto não me deixaram na porta escancarada do labirinto, de chave na mão, para que a pudesse trancar atrás de mim. Aqueles três nomes, Fátima Coelho, Carlos Costa e Nádia Gonçalves são, para mim, o sinónimo mais límpido de algo que já não tem por onde correr mal. Da tranquilidade.

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Seria idiota comparar o grau. Não sei medir o que custa ou o que vale mais, se as sete horas no bloco operatório se as mesmas sete que os meus pais, as minhas irmãs e o meu sobrinho esperam, sem arredar pé, sem que o pé arredado fosse sequer uma hipótese. Não se comparam valores de grau infinito porque são iguais na sua totalidade. Não se comparam absolutos.

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Quando era pequeno, tinha que atravessar um campo de cereais para chegar até à escola primária. Não o fazia sozinho. A minha mãe acordava sempre antes de toda a gente e preparava tudo para o dia que vinha aí. Depois, quando os outros se iam embora, pegava em mim, o mais pequeno e, não raras vezes, íamos a pé por esse campo até à escola. No final do ano, antes das férias, as espigas estavam no seu ponto mais alto e, nesse ponto mais alto, eram mais altas que eu. O carreiro, nessa altura, transformava-se num labirinto de que não se via o fundo e sabia que se me perdesse ali não saberia encontrar o caminho de volta. Mas não estava sozinho. A minha mãe seguia à minha frente, sempre em silêncio, de mão dada com a minha, a mostrar-me o caminho até à porta do labirinto, do outro lado, que ela já conseguia ver e eu não.

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Não sei comparar absolutos. São incomparavelmente sempre o mesmo. Não vale mais um que o outro. Mas, no labirinto sem fundo, três pessoas juntaram as mãos e uma delas, chamada Fátima Coelho, deu-ma a mim, enquanto dezenas de outras pessoas não a largavam. Sei que esse não foi um acto médico brilhante, ou melhor, não foi só um acto médico brilhante. Foi a própria definição de um acto de amor.

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No momento de maior fraqueza, quando me escapava a lágrima do medo, lá estava a mão do meu pai, a segurar a minha. No momento de fraqueza ainda maior, quando a minha mão não tinha força para procurar as mãos das minhas irmãs, elas correram a encontrá-la. E no fundo do labirinto dei a mão à minha mãe e, quando me escapava a lágrima da felicidade, fechei a porta atrás de mim.

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E suspirei "chegámos".

domingo, 10 de outubro de 2010

Sonho, pt. 2 - Micael

Os montes infestam-se. Aos milhares, a perder de vista, uma praga. Demónios de pele suja, têm unhas que prolongam os dedos vermelhos. Os seus corpos são imensos e toscos, as suas testas encimadas por pequenos cornos. Rastejam, cuspindo um veneno preto que lhes desce pelo queixo, sugando a vida da terra e fazendo o verde em sangue. Abocanham torrões húmidos cuspindo-lhes apenas o pó. Grunhem ruídos de prazer, devagar e baixinho. Avançam sem parar, a sua gula calma deixa um rasto inexorável de morte.

Ondulante, um pé paira no ar, cada vez mais perto da terra. A sola fina de uma bota verde toca o chão, e depois a outra. Ao peito, trás uma armadura azul, na cintura uma espada embainhada. Na face voam-lhe dois olhos claros e, nas costas, batem-lhe duas asas brancas.

Pousa no chão lentamente. Quando o cabelo ondulado assenta, solta um sorriso sereno. Um demónio, à sua frente, responde com um grunhido feroz e despeitoso, que excita os outros milhares e milhares de demónios. O anjo estende-lhes o sorriso, calmo e solitário. Empunha a sua espada e olha para o céu.

Nesse momento, o anjo canta o seu nome em três movimentos e atea-se um fogo verde e azul na sua espada. Um outro ponto de luz se acende, ao longe. Depois outro. Depois mais ainda. Milhares de luzes, juntam-se à sua. Todas são diferentes da sua, todas são diferentes das outras. Milhares de pontos de luz estrelam espaço entre o verde da terra que resta e o azul do céu que sobra. O anjo olha em volta levanta as três sílabas do seu nome num brado. Milhares de vozes, todas diferentes, lhe devolvem o repto. Sorridente, o anjo olha para baixo e, antes de trespassar o demónio com a sua espada ardente, sussura-lhe em três suspiros, as três sílabas do seu nome.
Mi-ca-el.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sonho, pt. 1 - Coisas bonitas

Desligaram tudo. Disseram-me que, agora, há só uma coisa, mais importante que falar e que cantar, mais importante que correr e que dançar, que comer e que mijar, que olhar e que ouvir, só há uma coisa. Chegaram ao ponto de dizer que não precisava de pensar em respirar, que não precisava de pensar em pensar. Mandaram-me ficar ali, deitado, reduzido ao sopro de uma máquina e ao fundo de uma equação e nada mais do que isso.

Sim, algo mais que isso. Sim, um pouco mais que isso, sobrou-me uma batida. Mandaram parar tudo, minguar tudo, esquecer tudo. Mas o coração continuou, sozinho, no escuro.

Nesses dias, como três dezes anos antes, e um pouquinho mais, fui o corpo em que apenas uma coisa importava: voltar a preencher de porvir cada um dos meus pedaços. Como nos dias antes de nascer, trinta e pouco anos antes, voltei a ser apenas uma batida no escuro. No escuro. No pouco mais que escuro.

Sim, algo mais que isso. Muito pouco mais que isso, muito pouco mais que escuro, muito pouco mais que nada, pouco mais que o sopro de uma máquina, no fundo de uma equação, eu fui só aquilo, sim, uma batida. Uma batida no pouco mais que escuro. Uma batida, uma batida, uma batida,
e o sonho de um ponto de luz.